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Entrevista de Waldemar Augusto Angerami (Camon) ao CRP-SP

 

A Psicologia na instituição hospitalar

 

Um dos participantes de uma equipe de trabalho que criou um modelo de atendimento em hospitais a pessoas que haviam tentado o suicídio, o psicólogo Waldemar Augusto Angerami-Camon conta de sua experiência profissional e defende que a questão do suicídio transcende a mera abordagem orgânica e precisa ser tratada a partir de uma compreensão profunda do desespero humano.

 

Waldemar Augusto Angerami, ou Camon, como é mais conhecido nos meios psi, é um campeão de publicações. Iniciou sua vida profissional como membro de uma equipe de trabalho que prestava atendimento a pessoas que haviam tentado suicídio. Desde cedo, no entanto, preocupou-se em registrar experiências e socializar seu aprendizado, seja na psicologia hospitalar, seja na psicoterapia existencialista, o que acabou lhe valendo o reconhecimento como um dos precursores do trabalho de psicólogo em hospitais. Ele, no entanto, relativiza isso. "Eu sou tido como pioneiro, mas não dá para comparar se fizermos um contraponto com a professora Mathilde Neder. Ela sim é uma pioneira. Quando começou no hospital eu tinha dois anos de idade. O que eu fiz foi publicar muito." Com 14 livros publicados, Camon realizou trabalhos em vários hospitais e desenvolveu projeto com a Prefeitura de São Paulo para atendimento a pessoas que tentavam suicídio no metrô. Nessa entrevista ao Jornal do CRP, ele contou de sua trajetória profissional, falou sobre o trabalho do profissional da psicologia na instituição hospitalar e defendeu a atuação do psicólogo nos casos de tentativa de suicídio, que, a seu ver, só agora começam a sair das mãos dos médicos e psiquiatras.

 

CRP - Como foi seu ingresso na área de psicologia hospitalar?

 

Camon - Foi um pouco ao acaso, assim como foi minha entrada na psicologia. Eu era musicista, vivia de recitais, tinha um grupo que tocava em casamentos. Um dia, durante um casamento, uma freira me convidou para cuidar de um coral na penitenciária feminina. Lá, acabei trabalhando com o pessoal da psicologia. No presídio havia um grupo de profissionais de uma entidade chamada Organização do Auxílio Fraterno (OAF) que me chamou para trabalhar com eles. Eles trabalhavam com homens de rua, mas na OAF havia um grupo que trabalhava com pessoas que tentavam suicídio. Ou seja, da penitenciária fui para a OAF trabalhar com homens de rua e acabei no Hospital Santa Verônica.

 

CRP - Nesse período o senhor era ainda estudante?

 

Camon - Quando entrei no Santa Verônica eu estava me formando. Mas, no período em que estive na penitenciária e que trabalhei com homens de rua, eu estava na graduação. Foi muito legal porque, com a vivência que tive na penitenciária e no trabalho com homens de rua, adquiri condições de questionar o curso de formação do ponto de vista teórico. Lembro-me de um professor que dava aquelas pirâmides de Fister. Ele deu aquela teoria do inconsciente coletivo com a cor azul dando sempre o mesmo resultado. Foi a primeira vez que questionei alguém teoricamente. Eu disse "não, mas se aplicar isso na penitenciária vai dar outro resultado, porque lá eles usam uniforme azul e têm horror a azul". Foi aquele embate e no fim ele se curvou. Imagine alguém que tem o azul como uniforme e odeia aquilo. O azul para essa pessoa tem outro significado. O vazio que o branco significa no teste, por exemplo, para quem é médico tem outro simbolismo. Logo depois que ingressei nesse grupo que trabalhava com suicídio o grupo acabou. Em 1977 comecei a trabalhar no Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas (HC), também com suicídio. E fiquei no HC até 1982, quando entrou a professora Mathilde Neder, para reestruturar o trabalho. Nessa ocasião, como estávamos implantando uma Rede Municipal, eu saí do HC e fiquei na Rede Municipal.

 

CRP - Nessa época em que o senhor trabalhou no Pronto-Socorro, como era encarada a atividade do psicólogo?

 

Camon - Quando cheguei ao Hospital das Clínicas, não havia nenhum trabalho anterior estruturado. Eu era o coordenador e havia psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras. Prestávamos atendimento tentando acudir a pessoa num momento de desespero. Depois deliberávamos algum tipo de encaminhamento, algum tipo de atendimento. Foi esse o primeiro trabalho que fizemos com suicídio. Era um modelo teórico de atuação muito interessante e por isso foi um trabalho muito bombástico, teve uma repercussão grande. Hoje vejo que esse nosso modelo está espalhado em várias partes do país, porque nós publicamos. Se esse trabalho não estivesse publicado, teria caminhado no boca a boca, ou seja, teria caminhado pouco.

 

CRP - O senhor se refere à criação de um modelo teórico, porque o grupo criou uma abordagem diferente do que se praticava até então?

 

Camon - Sim, no sentido de acudir aquele paciente que tentou o suicídio, de não permitir a alta hospitalar. Por exemplo, um paciente que tinha ingerido comprimido teria alta após a lavagem gástrica. Mas não permitíamos a alta enquanto não tivesse a nossa abordagem, que tentava acudir a pessoa e, num segundo momento, deliberava um tipo de encaminhamento. Esse encaminhamento era feito para psicoterapia, para alguma entidade que dava apoio para o trabalho. Nós tínhamos várias entidades. Por exemplo, se uma pessoa que era empregada doméstica tentava o suicídio, nós encaminhávamos para a psicoterapia e para a Associação das Empregadas Domésticas. E ela era acolhida com teto e com emprego. Portanto, quando me refiro a um novo modelo teórico, estou falando nesse sentido, de rever o que era o desespero, o que era o momento agudizado do sofrimento da pessoa, para daí promover uma ajuda. Conforme falei, esse trabalho já era realizado pela OAF, nós entramos em 1977. Quando comecei a trabalhar com suicídio não se aceitavam psicólogos. Na verdade é uma área em que nós ficamos muito tempo como assessores do psiquiatra. O psiquiatra atendia suicídio e nós assessorávamos de vez em quando. Era considerado caso de psiquiatria porque tinha que ter medicação, tinha que ter camisa-de-força, uma série de coisas. Até hoje existe esse problema. É uma área de exclusividade do psiquiatra. Mas é uma área em que, graças ao trabalho do qual eu fazia parte, o psicólogo começou a ser ouvido. Existem poucas publicações sobre suicídio, mas grande parte das que existem são minhas. Foi uma conquista muito grande nesse sentido. Hoje já podemos falar de suicídio como uma coisa do desespero humano, uma questão filosófica da desesperança, da destrutividade, da falta de perspectiva existencial, do tédio com a vida; não é mais coisa do psiquiatra, é coisa do psi. É coisa da clínica.

 

CRP - Quer dizer que a partir desse trabalho já não se tratava a alta apenas a partir do ponto de vista orgânico, mas de uma maneira mais ampla. Como o restante da equipe via isso naquela época?

 

Camon - No começo eles viam com certo cuidado, com certo receio. Porque a questão emocional hoje em dia já está mais palatável para outros profissionais, como os médicos. Mas naquele momento não estava. Só que, efetivamente, havia resultados. Ainda mais se considerarmos que o HC recebe encaminhamentos de outras unidades do Município. A pessoa tenta suicídio com soda cáustica na Vila Mariana, vai para o Pronto-Socorro da Vila Mariana, lá eles a mandam para o HC. Então, apesar da rotatividade, as pessoas viam resultados, viam razão de ser para respeitar nosso trabalho e colaborar. Nós tínhamos uma colaboração muito grande e efetiva.

 

CRP - E a demanda era alta? Como era a realidade do suicídio?

 

Camon - Eram atendidos em torno de 400 casos por ano. Era uma demanda alta.

 

CRP - A equipe fazia um monitoramento dos momentos em que aumentava essa demanda?

 

Camon - Tivemos momentos muito marcantes nesse trabalho. Muitos dos casos de suicídio, na verdade, eram de "suicidados". Eram vítimas dos espancamentos do DOI-Codi, de torturas, e era dada entrada no Pronto-Socorro como suicídio. Naquela época, a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) era proibida. Tinha polícia. Mas apresentamos um trabalho na SBPC em que tornamos públicas algumas informações. E aí foi um problema. Fomos impedidos de voltar ao hospital, mas depois voltamos novamente. Quando teve aquela fase de desemprego no início da década de 80, houve um crescimento muito grande de casos. O desespero das pessoas era originado no desemprego. Então nós publicamos um trabalho, chamado "Demissão final", que foi também para a SBPC e saiu na grande imprensa. E isso dava uma repercussão muito grande. Lembro-me de que naquele momento tínhamos muitos depoimentos de pessoas falando que a psicologia estava preocupada com esse tipo de questão social.

 

CRP - O senhor está levantando uma questão a respeito da inserção do psicólogo na instituição. Seja no Poder Judiciário, em escola ou na instituição hospitalar, o que se observa é que, pelo fato de o psicólogo ser membro de equipes que não têm como prioridade atuar sobre as questões diretamente psicológicas, a interface fica diluída no corpo do trabalho. Que tipo de atuação o senhor concebe para o profissional da psicologia na instituição hospitalar?

 

Camon - Em primeiro lugar, o psicólogo não está preparado para o trabalho institucional, seja em qualquer instituição. E ele sempre esbarra em outros profissionais que, ao contrário, têm uma formação institucional. Na escola, esbarra com o pedagogo. No hospital com o assistente social, na empresa, com o gerente de recursos humanos. Isso se deve a ele não ter uma formação que lhe dê visão institucional. O que ele faz muitas vezes é transpor o aprendizado de clínica para a instituição. Não estou propondo que ele negue o instrumental clínico, mas ele tem que saber que a instituição, de fato, tem objetivos específicos. Em um hospital, não adianta eu fazer um trabalho incrível com um paciente isoladamente se esse meu trabalho não for ao encontro do objetivo da instituição. Se discordar dos objetivos da instituição, tenho que trabalhar para transformar esses objetivos. Se não conseguir trabalhar e transformar esses objetivos, e eles forem aviltantes, tenho que sair da instituição. Mas não posso ficar numa coisa contrária àquilo que concebo como proposta de homem, vida e valores. Agora, a instituição nunca vai ter a psicologia como prioridade. Nenhuma instituição tem algo como prioridade isoladamente. No Poder Judiciário, por exemplo, todas as ciências são acessórias do direito. É o direito que toca a relação das pessoas, que estabelece o limite de convivência. Então se estou numa instituição judiciária, não tenho que falar que o psicólogo é o principal, porque ele não é o principal. O principal é o direito. O preso está lá por uma condição do direito. As pessoas pautam todas as condutas pelo que está estabelecido pelo direito. Num hospital é a mesma coisa. O principal não é o médico nem o assistente social. O objetivo é prestar o atendimento, curar, aliviar a dor. Todos se prestam a esse objetivo. Se eu quiser que o psicólogo seja mais do que o assistente social, mais do que o médico, é um desvio. Acho que é isso que muitas vezes acontece.

 

CRP - Não é uma questão de ser mais ou menos. Mas de como fica a psicologia nessa realidade.

 

Camon - O que eu vejo muitas vezes é o profissional achar que ele tem que ter um papel mais importante do que o que de fato lhe cabe. Na verdade nós somos parte de um todo. Se temos uma crítica voltada à segmentação, quando se fala nessa prioridade, também se está fazendo um segmento. O psicológico é importante, como é importante o físico, como é importante a lei. Há alguns anos, ainda se discutia se o psicólogo tinha lugar dentro do hospital. Hoje esse lugar já é fato. Agora, cabe ao psicólogo ver o que ele vai fazer desse espaço.

 

CRP - E, na sua opinião, o que cabe a ele fazer desse espaço?

 

Camon - Ele conquistou espaço. E as próprias instituições perceberam que, entre todas as facetas de um trabalho multidisciplinar, havia necessidade de um profissional que fizesse a leitura do emocional, que decodificasse a emoção. Então ele tem lugar porque há essa necessidade hoje em dia. Hoje temos a psiconeuroimunologia, que tem quantificado o atendimento emocional, transformando. Então, quer dizer, ele tem um espaço. Agora, como trabalhar para fazer desse espaço algo em que ele possa fluir mais solidamente, sedimentar melhor essa performance, é uma questão bem mais complexa, principalmente porque ele não está tendo a leitura institucional conforme eu disse anteriormente. Ele vai para a instituição simplesmente fazendo um transporte do instrumental clínico, que muitas vezes é individual. Ele aprende na faculdade a aplicar teste, técnica de entrevista, técnica de abordagem etc. Não aprende a trabalhar em grupo e de repente vai para uma instituição que exige dele o trabalho grupal, multidisciplinar, interdisciplinar.

 

CRP - Então na sua concepção, depois de tantos anos de psicologia hospitalar, as pessoas que estão saindo da graduação continuam com dificuldades de trabalhar em instituições porque não aprenderam na faculdade?

 

Camon - Não. Isso está mudando. Hoje não é verdade se dissermos simplesmente que ele não tem essa condição. O primeiro curso de especialização do Brasil foi o do Sedes Sapientiae, de 1981. De graduação, é o da PUC, de 1976. Nessa época, havia uma ou outra faculdade aqui ou acolá que dava uma ou outra palestra. Hoje em dia a maioria das faculdades tem psicologia hospitalar na graduação. Tem curso lato sensu na psicologia hospitalar. Quer dizer, se o aluno quiser, ele tem já na graduação uma forma de entrar em contato com esse espaço. Hoje, a maioria das faculdades tem. Se não é satisfatório, pelo menos já está havendo uma abertura. Talvez daqui a um tempo já se tenha uma matéria de análise institucional mesmo na graduação.

 

CRP - Na sua opinião, o que é mais interessante como instrumentalização para o recém-formado trabalhar em instituição, cursos específicos em cada área (psicologia hospitalar, por exemplo) ou um curso que habilitasse o aluno para trabalhar em instituição de maneira geral?

 

Camon - Uma matéria de análise institucional vai dar uma visão de instituição. Agora, cada instituição dessas tem especificidades tão próprias que não dá para transpor. Senão corre-se o mesmo risco de pegar o instrumental clínico e levar para a instituição. Imagine uma instituição corretiva de menores. É um mundo completamente diferente da própria instituição penal do adulto. Que é completamente diferente de uma instituição de homens de rua, que é completamente diferente de uma instituição de Aids, de um hospital, e assim por diante.

 

CRP - O senhor disse que no início de sua carreira foi possível fazer um questionamento na faculdade em função de sua vivência no trabalho com homens de rua. As clínicas-escola atendem apenas no modelo clínico. Partindo disso, como deveriam ser estruturados os estágios e as clínicas-escola?

 

Camon - Se compararmos uma clínica-escola de psicologia com uma clínica-escola de medicina vamos verificar que a de psicologia não vai ao encontro das necessidades da comunidade. A clínica médica ainda vai. A clínica-escola de psicologia vai ao encontro das necessidades da graduação. Se no currículo tem a matéria ludoterapia, então a clínica abre atendimento para ludoterapia. Se a comunidade precisar de ludoterapia, boa. Se a faculdade abre a matéria de psicomotricidade, então ela precisa de pacientes de psicomotricidade. Mas ela não vai a campo para ver o que a comunidade em que está inserida está precisando. Pode ser que essa comunidade não tenha casos de psicomotricidade, mas precise entender mais questões de abandono, alcoolismo. Esses casos não são atendidos. Nem sequer são abarcados na preocupação da clínica-escola. Ela não atende a essa necessidade. Ela impõe sua necessidade para a comunidade. Portanto, o primeiro passo era fazer essa inversão.

 

CRP - Se a prática está distante do que a comunidade necessita, como anda a produção teórica na Universidade?

 

Camon - Recentemente uma professora da Universidade do Rio Grande do Norte me disse que ela não sabia se os professores da USP eram melhores ou piores, mas que para ela eu era o melhor de todos porque escrevia sobre a nossa realidade e, quando ela precisa de qualquer coisa, vai a uma livraria e tem lá um livro. E que as grandes produções das pessoas da USP estão na biblioteca da USP. Acho que é isso. Quando se faz trabalhos as pessoas têm tanto medo de divulgar, tanto medo de crítica que acabam às vezes se encastelando. Não é possível que tantas pesquisas que se fazem de mestrado, de doutoramento, com coisas interessantes com meninos de rua, com Aids, fiquem só no meio acadêmico. Por quê? Porque quando as pessoas pensam em divulgar tem tanto revisionismo, tanta criticidade, que não expõem.

 

CRP - Como a instituição hospitalar está lidando com a questão emocional hoje?

 

Camon - Hoje a questão emocional deixou de pertencer só ao psicólogo. O próprio médico clínico, o ginecologista têm um olhar voltado para o emocional. O médico já o vê, busca, quantifica. Ele só não sabe lidar com esse emocional. Aí é que nós entramos. Mas essa preocupação não é só de profisisonais psi. Por isso é que nós temos espaço.

 

CRP - O aluno que entra hoje no curso de especialização do Sedes Sapientiae chega diferente do que há algum tempo em termos de preparação?

 

Camon - O que vejo é uma desqualificação dos graduados de ano para ano. Nós já tivemos absurdo de ter há uns anos uma pessoa que era professora de uma Universidade do Norte que veio e escreveu na prova de avaliação criança com dois s. Um psicólogo que escreve criança com dois s, acho que nunca leu, porque qualquer texto de psicologia tem a palavra criança três vezes no primeiro parágrafo. Como é que uma pessoa vai dar aula assim?

 

CRP - A psicologia hospitalar abriu novas possibilidades de conhecimento na área da psicologia?

 

Camon - Sim, porque a partir da entrada do psicólogo no hospital tem essa forte vertente de se preocupar com aspectos emocionais da dor, com aspectos emocionais de várias patologias, câncer, cardiologia etc. Sem dúvida. Se há tantas pesquisas hoje em dia nessa área é muito em função da entrada do psicólogo na área de hospital.

 

CRP - E se ela é inovadora em termos de conhecimento, ela também é inovadora em termos do atendimento?

 

Camon - Sem dúvida. No hospital o profissional vai para um outro setting que é na enfermaria, no leito, junto com outros profissionais. O atendimento é interrompido porque chegou a enfermeira com a medicação, enfim, é um outro enquadre. Mas de repente você vê que naquele outro setting seu trabalho funciona. Você tem outros objetivos, também temos que separar. Porque qual é o objetivo numa psicoterapia? Os três grandes objetivos numa psicoterapia são, independentemente da linha teórica: levar o paciente ao auto-conhecimento, ao auto-crescimento e à cura de determinados sintomas. Se você não atingir esses objetivos, a psicoterapia está carecendo de sentido. Não adianta fazer um trabalho incrível e o paciente não estar sendo levado ao auto-conhecimento, ao auto-crescimento e à cura dos sintomas. No hospital, é importante que essa diferença seja sempre frisada. Eu até posso atingir no meu atendimento algum desses objetivos. Mas o meu objetivo no hospital não é nenhum desses. É minimizar o sofrimento provocado pela hospitalização. O sofrimento da hospitalização varia de patologia para patologia. Para uma mulher que vai ser mastectomizada, por exemplo, a hospitalização tem implicações muito mais amplas que só o hospital. Tem implicações de sexualidade, de auto-estima, de auto-imagem, e por aí afora.

 

CRP - O senhor está apontando diferenças de enquadre na psicoterapia e no tratamento no hospital? E nos casos de suicídio?

 

Camon - No suicídio ele tem uma especificidade bastante clara. Trabalhávamos com a pessoa no momento agudo do desespero. Então configura também a minimização do sofrimento da hospitalização. Estamos atenuando aquele desespero naquele momento que configura a hospitalização. Depois, sim, é que vai ser deliberado que tipo de encaminhamento deve ser feito.

 

CRP - O senhor também realizou um trabalho com pessoas que tentavam suicídio no metrô. Como foi esse trabalho?

 

Camon - Foi na gestão Erundina. Tínhamos um trabalho com várias frentes. Uma das frentes era com o pessoal do serviço do metrô. Nós os atendíamos e tínhamos um treinamento, um serviço específico junto às estações. Era um trabalho bastante interessante. Depois que mudou a gestão, esses trabalhos todos que foram feitos na gestão Erundina pararam. Embora o metrô seja vinculado a uma secretaria estadual, essa ponte com a Secretaria Municipal de Saúde se perdeu. Nós fizemos um treinamento com as pessoas do próprio metrô que trabalhavam nas estações e sedimentamos uma base de atendimento com duas unidades hospitalares. Uma no hospital do Jabaquara e outra no hospital do Tatuapé. Os casos eram encaminhados para essas unidades. E nas unidades nós tínhamos pessoas treinadas que davam suporte. O pessoal do metrô era treinado para tirar a pessoa da pista e encaminhar para as unidades do hospital. Aí tinha a nossa equipe que chamava a família etc. Esse trabalho também era baseado em dar suporte no momento de desespero, de crise, em que a pessoa não está conseguindo ver possibilidade na vida. Nós não levávamos pessoas de fora, trabalhávamos com as pessoas das próprias unidades, médicos, psicólogos, assistentes sociais etc. Inclusive era a ambulância do próprio metrô que levava a pessoa para a unidade.

 

CRP - Nas duas últimas administrações, tanto estadual quanto municipal, e até mesmo na esfera federal, temos assistido ao desmonte de todo o sistema de saúde pública no Brasil. O que já perdemos em termos de psicologia hospitalar?

 

Camon - Houve o desmonte de trabalhos sistematizados que envolviam a prioridade comunitária. Algumas pessoas ainda continuam fazendo um bom trabalho nessas unidades. Mas da preocupação ideológica e comunitária não sobrou nada. Principalmente aqueles trabalhos que envolviam preocupações antimanicomiais, não sobrou nada.

 

CRP - Você trabalha numa abordagem existencial. Na psicologia hospitalar tem profissionais de várias abordagens. Como se dá essa convivência de linhas de trabalho diferentes?

 

Camon - As pessoas fazem uma certa confusão. Acreditam que, pelo fato de eu escrever a partir de um ponto de vista existencial e ser identificado com o movimento existencialista, a melhor linha para hospital é a existencial. Mas não é isso, há grandes trabalhos em hospital com base psicanalítica, com base de behaviorismo e com base existencial. Se eu for para uma empresa, vou trabalhar com existencial, que é a minha base. Quando falo de desespero humano, estou falando como existencialista. Não estou falando enquanto teórico existencial, mas enquanto clínico. Eu poderia ter como base a psicanálise e estar falando de desespero humano.

 

CRP - Como deve ser colocada a questão de acolhimento, suporte e aceitação no atendimento a casos de auto-destruição e suicídio?

 

Camon - Eu preconizo o seguinte: na verdade o fundamental é o acolhimento, é a pessoa sentir que ela está acolhida num porto seguro para refletir sobre o desespero dela. Acho importante trazer isso para o psicólogo, porque temos condição de lidar com o desespero. Nos trabalhos de suicídio, há uma dimensão filosófica, a questão do sentido da vida é uma digressão filosófica, em qualquer linha teórica. Não se traz para a claridade que alguns teóricos psi se mataram, tipo Melanie Kleine. O Deleuze estava com falta de ar e se jogou. O que é suicídio? É alguém acabar com a própria vida, por deliberação. O Deleuze se jogou porque não agüentava mais o desespero da falta de ar. E são brilhantes teóricos. Mas é uma questão de desespero humano, e é isso que tem que ser trazido à tona. E essa discussão não é mais da psiquiatria. Ela é da psicologia. Tem que ser da psicologia na medida em que a psicologia está apta para mexer com psicoterapia. Senão o que acontece? O meu paciente em psicoterapia fala de suicídio e eu o encaminho para medicação? E o desespero humano dele, eu não levo em conta?

 

CRP - Mas, no seu entendimento, por que essa questão ainda fica atribuída ao psiquiatra?

 

Camon - Porque nós não estamos assumindo que é uma questão de desespero humano, e que é grave, como tantas outras questões.

FONTE: http://www.crpsp.org.br

 

Valdemar Augusto Angerami - Camon

Psicoterapeuta Existencial.

Professor de Pós-Graduação em "Psicologia da Saúde" na PUC – SP;

Professor em Psicologia da Saúde - UFRN;

Coordenador do Centro de Psicoterapia Existencial;

Membro da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo

Autor com o maior nº de livros publicados em psicologia do Brasil e adotados nas universidades de Portugal, México e Canadá

http://www.psicoexistencial.com.br

 

 

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