Entrevista de Waldemar Augusto Angerami
(Camon) ao CRP-SP
A Psicologia na instituição hospitalar
Um
dos participantes de uma equipe de trabalho que criou um modelo de atendimento
em hospitais a pessoas que haviam tentado o suicídio, o psicólogo Waldemar Augusto Angerami-Camon conta
de sua experiência profissional e defende que a questão do suicídio transcende
a mera abordagem orgânica e precisa ser tratada a partir de uma compreensão
profunda do desespero humano.
Waldemar Augusto Angerami, ou Camon, como
é mais conhecido nos meios psi, é um campeão de publicações. Iniciou sua vida
profissional como membro de uma equipe de trabalho que prestava atendimento a
pessoas que haviam tentado suicídio. Desde cedo, no entanto, preocupou-se em
registrar experiências e socializar seu aprendizado, seja na psicologia
hospitalar, seja na psicoterapia existencialista, o que acabou lhe valendo o reconhecimento
como um dos precursores do trabalho de psicólogo em hospitais. Ele, no entanto,
relativiza isso. "Eu sou tido como pioneiro, mas não dá para comparar se
fizermos um contraponto com a professora Mathilde Neder. Ela sim é uma
pioneira. Quando começou no hospital eu tinha dois anos de idade. O que eu fiz
foi publicar muito." Com 14 livros publicados, Camon realizou trabalhos em
vários hospitais e desenvolveu projeto com a Prefeitura de São Paulo para
atendimento a pessoas que tentavam suicídio no metrô. Nessa entrevista ao
Jornal do CRP, ele contou de sua trajetória profissional, falou sobre o
trabalho do profissional da psicologia na instituição hospitalar e defendeu a
atuação do psicólogo nos casos de tentativa de suicídio, que, a seu ver, só agora
começam a sair das mãos dos médicos e psiquiatras.
CRP -
Como foi seu ingresso na área de psicologia hospitalar?
Camon - Foi um pouco ao
acaso, assim como foi minha entrada na psicologia. Eu era musicista, vivia de
recitais, tinha um grupo que tocava em casamentos. Um dia, durante um
casamento, uma freira me convidou para cuidar de um coral na penitenciária
feminina. Lá, acabei trabalhando com o pessoal da psicologia. No presídio havia
um grupo de profissionais de uma entidade chamada Organização do Auxílio
Fraterno (OAF) que me chamou para trabalhar com eles. Eles trabalhavam com
homens de rua, mas na OAF havia um grupo que trabalhava com pessoas que
tentavam suicídio. Ou seja, da penitenciária fui para a OAF trabalhar com
homens de rua e acabei no Hospital Santa Verônica.
CRP -
Nesse período o senhor era ainda estudante?
Camon - Quando entrei no
Santa Verônica eu estava me formando. Mas, no período em que estive na
penitenciária e que trabalhei com homens de rua, eu estava na graduação. Foi
muito legal porque, com a vivência que tive na penitenciária e no trabalho com
homens de rua, adquiri condições de questionar o curso de formação do ponto de
vista teórico. Lembro-me de um professor que dava aquelas pirâmides de Fister.
Ele deu aquela teoria do inconsciente coletivo com a cor azul dando sempre o
mesmo resultado. Foi a primeira vez que questionei alguém teoricamente. Eu
disse "não, mas se aplicar isso na penitenciária vai dar outro resultado,
porque lá eles usam uniforme azul e têm horror a azul". Foi aquele embate
e no fim ele se curvou. Imagine alguém que tem o azul como uniforme e odeia
aquilo. O azul para essa pessoa tem outro significado. O vazio que o branco
significa no teste, por exemplo, para quem é médico tem outro simbolismo. Logo
depois que ingressei nesse grupo que trabalhava com suicídio o grupo acabou. Em
1977 comecei a trabalhar no Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas (HC),
também com suicídio. E fiquei no HC até 1982, quando entrou a professora
Mathilde Neder, para reestruturar o trabalho. Nessa ocasião, como estávamos
implantando uma Rede Municipal, eu saí do HC e fiquei na Rede Municipal.
CRP -
Nessa época em que o senhor trabalhou no Pronto-Socorro, como era encarada a
atividade do psicólogo?
Camon - Quando cheguei ao
Hospital das Clínicas, não havia nenhum trabalho anterior estruturado. Eu era o
coordenador e havia psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras. Prestávamos
atendimento tentando acudir a pessoa num momento de desespero. Depois
deliberávamos algum tipo de encaminhamento, algum tipo de atendimento. Foi esse
o primeiro trabalho que fizemos com suicídio. Era um modelo teórico de atuação
muito interessante e por isso foi um trabalho muito bombástico, teve uma
repercussão grande. Hoje vejo que esse nosso modelo está espalhado em várias
partes do país, porque nós publicamos. Se esse trabalho não estivesse
publicado, teria caminhado no boca a boca, ou seja, teria caminhado pouco.
CRP -
O senhor se refere à criação de um modelo teórico, porque o grupo criou uma
abordagem diferente do que se praticava até então?
Camon - Sim, no sentido de
acudir aquele paciente que tentou o suicídio, de não permitir a alta
hospitalar. Por exemplo, um paciente que tinha ingerido comprimido teria alta
após a lavagem gástrica. Mas não permitíamos a alta enquanto não tivesse a
nossa abordagem, que tentava acudir a pessoa e, num segundo momento, deliberava
um tipo de encaminhamento. Esse encaminhamento era feito para psicoterapia,
para alguma entidade que dava apoio para o trabalho. Nós tínhamos várias
entidades. Por exemplo, se uma pessoa que era empregada doméstica tentava o
suicídio, nós encaminhávamos para a psicoterapia e para a Associação das
Empregadas Domésticas. E ela era acolhida com teto e com emprego. Portanto,
quando me refiro a um novo modelo teórico, estou falando nesse sentido, de
rever o que era o desespero, o que era o momento agudizado do sofrimento da
pessoa, para daí promover uma ajuda. Conforme falei, esse trabalho já era
realizado pela OAF, nós entramos em 1977. Quando comecei a trabalhar com
suicídio não se aceitavam psicólogos. Na verdade é uma área em que nós ficamos
muito tempo como assessores do psiquiatra. O psiquiatra atendia suicídio e nós
assessorávamos de vez em quando. Era considerado caso de psiquiatria porque
tinha que ter medicação, tinha que ter camisa-de-força, uma série de coisas.
Até hoje existe esse problema. É uma área de exclusividade do psiquiatra. Mas é
uma área em que, graças ao trabalho do qual eu fazia parte, o psicólogo começou
a ser ouvido. Existem poucas publicações sobre suicídio, mas grande parte das
que existem são minhas. Foi uma conquista muito grande nesse sentido. Hoje já
podemos falar de suicídio como uma coisa do desespero humano, uma questão
filosófica da desesperança, da destrutividade, da falta de perspectiva
existencial, do tédio com a vida; não é mais coisa do psiquiatra, é coisa do
psi. É coisa da clínica.
CRP -
Quer dizer que a partir desse trabalho já não se tratava a alta apenas a partir
do ponto de vista orgânico, mas de uma maneira mais ampla. Como o restante da
equipe via isso naquela época?
Camon - No começo eles viam
com certo cuidado, com certo receio. Porque a questão emocional hoje em dia já
está mais palatável para outros profissionais, como os médicos. Mas naquele
momento não estava. Só que, efetivamente, havia resultados. Ainda mais se
considerarmos que o HC recebe encaminhamentos de outras unidades do Município.
A pessoa tenta suicídio com soda cáustica na Vila Mariana, vai para o
Pronto-Socorro da Vila Mariana, lá eles a mandam para o HC. Então, apesar da
rotatividade, as pessoas viam resultados, viam razão de ser para respeitar
nosso trabalho e colaborar. Nós tínhamos uma colaboração muito grande e
efetiva.
CRP -
E a demanda era alta? Como era a realidade do suicídio?
Camon - Eram atendidos em
torno de 400 casos por ano. Era uma demanda alta.
CRP -
A equipe fazia um monitoramento dos momentos em que aumentava essa demanda?
Camon - Tivemos momentos
muito marcantes nesse trabalho. Muitos dos casos de suicídio, na verdade, eram
de "suicidados". Eram vítimas dos espancamentos do DOI-Codi, de
torturas, e era dada entrada no Pronto-Socorro como suicídio. Naquela época, a
reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) era
proibida. Tinha polícia. Mas apresentamos um trabalho na SBPC em que tornamos
públicas algumas informações. E aí foi um problema. Fomos impedidos de voltar
ao hospital, mas depois voltamos novamente. Quando teve aquela fase de
desemprego no início da década de 80, houve um crescimento muito grande de
casos. O desespero das pessoas era originado no desemprego. Então nós
publicamos um trabalho, chamado "Demissão final", que foi também para
a SBPC e saiu na grande imprensa. E isso dava uma repercussão muito grande.
Lembro-me de que naquele momento tínhamos muitos depoimentos de pessoas falando
que a psicologia estava preocupada com esse tipo de questão social.
CRP -
O senhor está levantando uma questão a respeito da inserção do psicólogo na
instituição. Seja no Poder Judiciário, em escola ou na instituição hospitalar,
o que se observa é que, pelo fato de o psicólogo ser membro de equipes que não
têm como prioridade atuar sobre as questões diretamente psicológicas, a
interface fica diluída no corpo do trabalho. Que tipo de atuação o senhor
concebe para o profissional da psicologia na instituição hospitalar?
Camon - Em primeiro lugar,
o psicólogo não está preparado para o trabalho institucional, seja em qualquer
instituição. E ele sempre esbarra em outros profissionais que, ao contrário, têm
uma formação institucional. Na escola, esbarra com o pedagogo. No hospital com
o assistente social, na empresa, com o gerente de recursos humanos. Isso se
deve a ele não ter uma formação que lhe dê visão institucional. O que ele faz
muitas vezes é transpor o aprendizado de clínica para a instituição. Não estou
propondo que ele negue o instrumental clínico, mas ele tem que saber que a
instituição, de fato, tem objetivos específicos. Em um hospital, não adianta eu
fazer um trabalho incrível com um paciente isoladamente se esse meu trabalho
não for ao encontro do objetivo da instituição. Se discordar dos objetivos da
instituição, tenho que trabalhar para transformar esses objetivos. Se não
conseguir trabalhar e transformar esses objetivos, e eles forem aviltantes,
tenho que sair da instituição. Mas não posso ficar numa coisa contrária àquilo
que concebo como proposta de homem, vida e valores. Agora, a instituição nunca
vai ter a psicologia como prioridade. Nenhuma instituição tem algo como
prioridade isoladamente. No Poder Judiciário, por exemplo, todas as ciências
são acessórias do direito. É o direito que toca a relação das pessoas, que
estabelece o limite de convivência. Então se estou numa instituição judiciária,
não tenho que falar que o psicólogo é o principal, porque ele não é o
principal. O principal é o direito. O preso está lá por uma condição do
direito. As pessoas pautam todas as condutas pelo que está estabelecido pelo
direito. Num hospital é a mesma coisa. O principal não é o médico nem o assistente
social. O objetivo é prestar o atendimento, curar, aliviar a dor. Todos se
prestam a esse objetivo. Se eu quiser que o psicólogo seja mais do que o
assistente social, mais do que o médico, é um desvio. Acho que é isso que
muitas vezes acontece.
CRP -
Não é uma questão de ser mais ou menos. Mas de como fica a psicologia nessa
realidade.
Camon - O que eu vejo muitas
vezes é o profissional achar que ele tem que ter um papel mais importante do
que o que de fato lhe cabe. Na verdade nós somos parte de um todo. Se temos uma
crítica voltada à segmentação, quando se fala nessa prioridade, também se está
fazendo um segmento. O psicológico é importante, como é importante o físico,
como é importante a lei. Há alguns anos, ainda se discutia se o psicólogo tinha
lugar dentro do hospital. Hoje esse lugar já é fato. Agora, cabe ao psicólogo
ver o que ele vai fazer desse espaço.
CRP -
E, na sua opinião, o que cabe a ele fazer desse espaço?
Camon - Ele conquistou
espaço. E as próprias instituições perceberam que, entre todas as facetas de um
trabalho multidisciplinar, havia necessidade de um profissional que fizesse a
leitura do emocional, que decodificasse a emoção. Então ele tem lugar porque há
essa necessidade hoje em dia. Hoje temos a psiconeuroimunologia, que tem quantificado
o atendimento emocional, transformando. Então, quer dizer, ele tem um espaço.
Agora, como trabalhar para fazer desse espaço algo em que ele possa fluir mais
solidamente, sedimentar melhor essa performance, é uma questão bem mais
complexa, principalmente porque ele não está tendo a leitura institucional
conforme eu disse anteriormente. Ele vai para a instituição simplesmente
fazendo um transporte do instrumental clínico, que muitas vezes é individual.
Ele aprende na faculdade a aplicar teste, técnica de entrevista, técnica de
abordagem etc. Não aprende a trabalhar em grupo e de repente vai para uma
instituição que exige dele o trabalho grupal, multidisciplinar,
interdisciplinar.
CRP -
Então na sua concepção, depois de tantos anos de psicologia hospitalar, as
pessoas que estão saindo da graduação continuam com dificuldades de trabalhar
em instituições porque não aprenderam na faculdade?
Camon - Não. Isso está
mudando. Hoje não é verdade se dissermos simplesmente que ele não tem essa
condição. O primeiro curso de especialização do Brasil foi o do Sedes
Sapientiae, de 1981. De graduação, é o da PUC, de 1976. Nessa época, havia uma
ou outra faculdade aqui ou acolá que dava uma ou outra palestra. Hoje em dia a
maioria das faculdades tem psicologia hospitalar na graduação. Tem curso lato
sensu na psicologia hospitalar. Quer dizer, se o aluno quiser, ele tem já na
graduação uma forma de entrar em contato com esse espaço. Hoje, a maioria das
faculdades tem. Se não é satisfatório, pelo menos já está havendo uma abertura.
Talvez daqui a um tempo já se tenha uma matéria de análise institucional mesmo
na graduação.
CRP -
Na sua opinião, o que é mais interessante como instrumentalização para o
recém-formado trabalhar em instituição, cursos específicos em cada área
(psicologia hospitalar, por exemplo) ou um curso que habilitasse o aluno para
trabalhar em instituição de maneira geral?
Camon - Uma matéria de
análise institucional vai dar uma visão de instituição. Agora, cada instituição
dessas tem especificidades tão próprias que não dá para transpor. Senão
corre-se o mesmo risco de pegar o instrumental clínico e levar para a
instituição. Imagine uma instituição corretiva de menores. É um mundo
completamente diferente da própria instituição penal do adulto. Que é completamente
diferente de uma instituição de homens de rua, que é completamente diferente de
uma instituição de Aids, de um hospital, e assim por diante.
CRP -
O senhor disse que no início de sua carreira foi possível fazer um
questionamento na faculdade em função de sua vivência no trabalho com homens de
rua. As clínicas-escola atendem apenas no modelo clínico. Partindo disso, como
deveriam ser estruturados os estágios e as clínicas-escola?
Camon - Se compararmos uma
clínica-escola de psicologia com uma clínica-escola de medicina vamos verificar
que a de psicologia não vai ao encontro das necessidades da comunidade. A
clínica médica ainda vai. A clínica-escola de psicologia vai ao encontro das
necessidades da graduação. Se no currículo tem a matéria ludoterapia, então a
clínica abre atendimento para ludoterapia. Se a comunidade precisar de
ludoterapia, boa. Se a faculdade abre a matéria de psicomotricidade, então ela
precisa de pacientes de psicomotricidade. Mas ela não vai a campo para ver o
que a comunidade em que está inserida está precisando. Pode ser que essa
comunidade não tenha casos de psicomotricidade, mas precise entender mais
questões de abandono, alcoolismo. Esses casos não são atendidos. Nem sequer são
abarcados na preocupação da clínica-escola. Ela não atende a essa necessidade.
Ela impõe sua necessidade para a comunidade. Portanto, o primeiro passo era
fazer essa inversão.
CRP -
Se a prática está distante do que a comunidade necessita, como anda a produção
teórica na Universidade?
Camon - Recentemente uma
professora da Universidade do Rio Grande do Norte me disse que ela não sabia se
os professores da USP eram melhores ou piores, mas que para ela eu era o melhor
de todos porque escrevia sobre a nossa realidade e, quando ela precisa de
qualquer coisa, vai a uma livraria e tem lá um livro. E que as grandes
produções das pessoas da USP estão na biblioteca da USP. Acho que é isso.
Quando se faz trabalhos as pessoas têm tanto medo de divulgar, tanto medo de
crítica que acabam às vezes se encastelando. Não é possível que tantas
pesquisas que se fazem de mestrado, de doutoramento, com coisas interessantes
com meninos de rua, com Aids, fiquem só no meio acadêmico. Por quê? Porque
quando as pessoas pensam em divulgar tem tanto revisionismo, tanta criticidade,
que não expõem.
CRP -
Como a instituição hospitalar está lidando com a questão emocional hoje?
Camon - Hoje a questão
emocional deixou de pertencer só ao psicólogo. O próprio médico clínico, o
ginecologista têm um olhar voltado para o emocional. O médico já o vê, busca,
quantifica. Ele só não sabe lidar com esse emocional. Aí é que nós entramos.
Mas essa preocupação não é só de profisisonais psi. Por isso é que nós temos
espaço.
CRP -
O aluno que entra hoje no curso de especialização do Sedes Sapientiae chega
diferente do que há algum tempo em termos de preparação?
Camon
- O que vejo é uma desqualificação dos graduados de ano para ano. Nós já
tivemos absurdo de ter há uns anos uma pessoa que era professora de uma
Universidade do Norte que veio e escreveu na prova de avaliação criança com
dois s. Um psicólogo que escreve criança com dois s, acho que nunca leu, porque
qualquer texto de psicologia tem a palavra criança três vezes no primeiro
parágrafo. Como é que uma pessoa vai dar aula assim?
CRP -
A psicologia hospitalar abriu novas possibilidades de conhecimento na área da
psicologia?
Camon - Sim, porque a
partir da entrada do psicólogo no hospital tem essa forte vertente de se
preocupar com aspectos emocionais da dor, com aspectos emocionais de várias
patologias, câncer, cardiologia etc. Sem dúvida. Se há tantas pesquisas hoje em
dia nessa área é muito em função da entrada do psicólogo na área de hospital.
CRP -
E se ela é inovadora em termos de conhecimento, ela também é inovadora em termos
do atendimento?
Camon - Sem dúvida. No
hospital o profissional vai para um outro setting que é na enfermaria, no
leito, junto com outros profissionais. O atendimento é interrompido porque
chegou a enfermeira com a medicação, enfim, é um outro enquadre. Mas de repente
você vê que naquele outro setting seu trabalho funciona. Você tem outros
objetivos, também temos que separar. Porque qual é o objetivo numa
psicoterapia? Os três grandes objetivos numa psicoterapia são,
independentemente da linha teórica: levar o paciente ao auto-conhecimento, ao
auto-crescimento e à cura de determinados sintomas. Se você não atingir esses
objetivos, a psicoterapia está carecendo de sentido. Não adianta fazer um
trabalho incrível e o paciente não estar sendo levado ao auto-conhecimento, ao
auto-crescimento e à cura dos sintomas. No hospital, é importante que essa
diferença seja sempre frisada. Eu até posso atingir no meu atendimento algum
desses objetivos. Mas o meu objetivo no hospital não é nenhum desses. É
minimizar o sofrimento provocado pela hospitalização. O sofrimento da
hospitalização varia de patologia para patologia. Para uma mulher que vai ser
mastectomizada, por exemplo, a hospitalização tem implicações muito mais amplas
que só o hospital. Tem implicações de sexualidade, de auto-estima, de
auto-imagem, e por aí afora.
CRP -
O senhor está apontando diferenças de enquadre na psicoterapia e no tratamento
no hospital? E nos casos de suicídio?
Camon - No suicídio ele tem
uma especificidade bastante clara. Trabalhávamos com a pessoa no momento agudo
do desespero. Então configura também a minimização do sofrimento da
hospitalização. Estamos atenuando aquele desespero naquele momento que
configura a hospitalização. Depois, sim, é que vai ser deliberado que tipo de
encaminhamento deve ser feito.
CRP -
O senhor também realizou um trabalho com pessoas que tentavam suicídio no
metrô. Como foi esse trabalho?
Camon - Foi na gestão
Erundina. Tínhamos um trabalho com várias frentes. Uma das frentes era com o
pessoal do serviço do metrô. Nós os atendíamos e tínhamos um treinamento, um
serviço específico junto às estações. Era um trabalho bastante interessante.
Depois que mudou a gestão, esses trabalhos todos que foram feitos na gestão
Erundina pararam. Embora o metrô seja vinculado a uma secretaria estadual, essa
ponte com a Secretaria Municipal de Saúde se perdeu. Nós fizemos um treinamento
com as pessoas do próprio metrô que trabalhavam nas estações e sedimentamos uma
base de atendimento com duas unidades hospitalares. Uma no hospital do
Jabaquara e outra no hospital do Tatuapé. Os casos eram encaminhados para essas
unidades. E nas unidades nós tínhamos pessoas treinadas que davam suporte. O
pessoal do metrô era treinado para tirar a pessoa da pista e encaminhar para as
unidades do hospital. Aí tinha a nossa equipe que chamava a família etc. Esse
trabalho também era baseado em dar suporte no momento de desespero, de crise,
em que a pessoa não está conseguindo ver possibilidade na vida. Nós não
levávamos pessoas de fora, trabalhávamos com as pessoas das próprias unidades,
médicos, psicólogos, assistentes sociais etc. Inclusive era a ambulância do
próprio metrô que levava a pessoa para a unidade.
CRP -
Nas duas últimas administrações, tanto estadual quanto municipal, e até mesmo
na esfera federal, temos assistido ao desmonte de todo o sistema de saúde
pública no Brasil. O que já perdemos em termos de psicologia hospitalar?
Camon - Houve o desmonte de
trabalhos sistematizados que envolviam a prioridade comunitária. Algumas
pessoas ainda continuam fazendo um bom trabalho nessas unidades. Mas da
preocupação ideológica e comunitária não sobrou nada. Principalmente aqueles
trabalhos que envolviam preocupações antimanicomiais, não sobrou nada.
CRP -
Você trabalha numa abordagem existencial. Na psicologia hospitalar tem
profissionais de várias abordagens. Como se dá essa convivência de linhas de
trabalho diferentes?
Camon - As pessoas fazem uma
certa confusão. Acreditam que, pelo fato de eu escrever a partir de um ponto de
vista existencial e ser identificado com o movimento existencialista, a melhor
linha para hospital é a existencial. Mas não é isso, há grandes trabalhos em
hospital com base psicanalítica, com base de behaviorismo e com base
existencial. Se eu for para uma empresa, vou trabalhar com existencial, que é a
minha base. Quando falo de desespero humano, estou falando como
existencialista. Não estou falando enquanto teórico existencial, mas enquanto
clínico. Eu poderia ter como base a psicanálise e estar falando de desespero
humano.
CRP -
Como deve ser colocada a questão de acolhimento, suporte e aceitação no
atendimento a casos de auto-destruição e suicídio?
Camon - Eu preconizo o
seguinte: na verdade o fundamental é o acolhimento, é a pessoa sentir que ela
está acolhida num porto seguro para refletir sobre o desespero dela. Acho
importante trazer isso para o psicólogo, porque temos condição de lidar com o
desespero. Nos trabalhos de suicídio, há uma dimensão filosófica, a questão do
sentido da vida é uma digressão filosófica, em qualquer linha teórica. Não se
traz para a claridade que alguns teóricos psi se mataram, tipo Melanie Kleine.
O Deleuze estava com falta de ar e se jogou. O que é suicídio? É alguém acabar
com a própria vida, por deliberação. O Deleuze se jogou porque não agüentava
mais o desespero da falta de ar. E são brilhantes teóricos. Mas é uma questão
de desespero humano, e é isso que tem que ser trazido à tona. E essa discussão não
é mais da psiquiatria. Ela é da psicologia. Tem que ser da psicologia na medida
em que a psicologia está apta para mexer com psicoterapia. Senão o que
acontece? O meu paciente em psicoterapia fala de suicídio e eu o encaminho para
medicação? E o desespero humano dele, eu não levo em conta?
CRP -
Mas, no seu entendimento, por que essa questão ainda fica atribuída ao
psiquiatra?
Camon - Porque nós não
estamos assumindo que é uma questão de desespero humano, e que é grave, como
tantas outras questões.
FONTE:
http://www.crpsp.org.br
Valdemar Augusto Angerami - Camon
Psicoterapeuta
Existencial.
Professor
de Pós-Graduação em "Psicologia da Saúde" na PUC – SP;
Professor
em Psicologia da Saúde - UFRN;
Coordenador
do Centro de Psicoterapia Existencial;
Membro
da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo
Autor
com o maior nº de livros publicados em psicologia do Brasil e adotados nas
universidades de Portugal, México e Canadá
http://www.psicoexistencial.com.br